Por Daniel Kupermann*
Exercitar a liberdade na democracia implica abraçar as diferenças e corrigir os erros. Pode ser doloroso, mas a outra alternativa seria erigir um novo ídolo e nos submeter cegamente a ele.Eleições em regimes democráticos costumam ser períodos caracterizados pelo entusiasmo. No decorrer das campanhas, afirmamos os nossos princípios éticos e as convicções que nos fazem votar em um ou em outro candidato. Em contrapartida, costumam também emergir conflitos pessoais – na vida social e familiar – que podem causar constrangimentos. São temas que, em condições normais de temperatura e pressão, não provocam grandes problemas.
Mas, em épocas eleitorais, podem esmorecer a alegria do gesto político. Ao que tudo indica, desta vez, as coisas estão se passando de maneira ainda mais exacerbada. A psicologia de grupo, por meio da qual as pessoas se agregam pela aderência acrítica a um ideal comum, tem tornado qualquer debate real em torno de ideias e propostas algo impraticável. No seu lugar, surgem manifestações tipificadas pela truculência, pelo ódio, pelo rebaixamento humilhante dos adversários, pela paranoia e pela angústia. Mais do que isso, temos visto o medo concreto da violência que poderia atingir a integridade física e psíquica dos atores sociais. São consequências tristes das poderosas forças motrizes da fé dogmática e das paixões destrutivas que, em determinados períodos históricos, dominam as sensibilidades humanas.
O recurso a uma conhecida alegoria pode contribuir para uma leitura psicanalítica do momento em que vivemos. O livro é o do Êxodo, da Bíblia. Nele, narra-se que os hebreus recém-libertos da escravidão no Egito não suportaram esperar Moisés descer do monte Sinai com as tábuas da lei, os dez mandamentos. Em um movimento que a psicanálise chama de regressão, o povo erigiu um bezerro de ouro para idolatrar.
Frente ao desaparecimento do líder e diante da angústia das incertezas provocadas pela nova condição de liberdade, os hebreus optaram por reeditar o Egito no deserto do Sinai. Ao construir um novo ídolo, eles retomaram a escravidão no âmago de cada alma. O resultado dessa história é bastante conhecido. Como punição divina, os hebreus foram mantidos quarenta anos peregrinando no deserto, para que apenas a nova geração – que não conheceu o chicote – adentrasse a terra prometida. Ela, então, seria povoada de homens livres. Para essa nova geração, o pacto social se basearia não mais na obediência e na idolatria cegas, mas no exercício de interpretação da lei, objetivando o bem comum.
Duas advertências podem ser imediatamente deduzidas desse mito fundador do espírito de liberdade que inspirou a tradição judaico-cristã e seus desdobramentos modernos no Ocidente. A primeira delas é que compartilhamos de uma tentação regressiva para a servidão voluntária, uma atitude que foi nomeada pelo austríaco de Sigmund Freud (1856-1939) de masoquismo. Na vida social, esse comportamento se expressa pela adesão a lideranças que ficam tanto mais fascinantes quanto mais incorporam a máscara da onipotência. Elas se oferecem a nós como a encarnação do Messias, que poderá derrotar todos os nossos inimigos, sejam eles reais ou imaginários.
A segunda advertência que a história bíblica traz é que essa tentação se torna tanto maior quanto mais intenso for o pânico social e a angústia. A princípio, reagimos negativamente frente à tarefa de estabelecer pactos sociais baseados nos princípios da liberdade compartilhada e do respeito às diferenças. Liberdade implica o exercício da diferença. E abraçar aqueles que não são iguais a nós ameaça, sobretudo, valores que subsistem apenas pela mera conservação dos costumes e da tradição. Assim, o empoderamento das mulheres e da comunidade LGBTI, o sistema de cotas nas universidades, os direitos trabalhistas, a preservação das terras e da cultura indígena e os demais avanços de uma vida social dinâmica intimidam valores tradicionais pelo simples fato de modificarem as paisagens às quais estamos habituados a contemplar.
“Liberdade implica o exercício das diferenças, o que ameaça valores que só subsistem graças à tradição”
A analogia com o momento em que vivemos hoje no Brasil é autoevidente. Mesmo assim, tomarei a indiscrição de exercitá-la junto ao leitor. Como brasileiros, nosso Sinai indicaria o percurso rumo à consolidação da ordem democrática, após duas décadas de ditadura militar onde vigoraram limites estreitos a nossa liberdade de pensar, sentir e agir, bem como a de se associar com nossos pares. Nosso chicote aludiria a censura, prisões injustificadas, tortura, assassinatos e desaparecimento de corpos. São essas algumas das violências perpetradas pelos representantes do regime militar, que vigorou de 1964 a 1985. Outro expediente comum a esse período era a patrulha ideológica, que impedia nossos companheiros da resistência de questionar quaisquer diretrizes partidário-ideológicas.
Nossa espera pela democracia prometida apontaria para o desalento provocado por sucessivos governos que, ao lado das promessas relativamente cumpridas – como controle da inflação, estabilidade monetária, mobilidade social, construção de sistemas abrangentes de saúde e educação, diminuição do analfabetismo e da fome –, foram também atravessados pela corrupção, pela irresponsabilidade de representantes eleitos e pelo saque ao patrimônio público. No entanto, esses governos, por serem democráticos, podem ser aperfeiçoados e corrigidos de acordo com a Justiça, a nossa voz, nossas ações e nosso voto.
A moral da história é que, no contexto eleitoral que estamos vivendo, nos deparamos com duas alternativas. A primeira é ancorada no princípio de realidade. Por isso mesmo, é a opção sempre mais dolorosa. Ela inclui a reiteração daquele que é conhecido como o menos pior dos regimes políticos, a democracia. Abarca também a necessidade de seguir nosso caminho de construção de um país norteado pelos valores de um Estado laico, da liberdade e do respeito às diferenças. A outra alternativa seria a de erigir um bezerro de ouro, deixando-nos entorpecer e cegar pelo seu brilho ofuscante.
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